saudades do fax: ningu茅m parece, mesmo com todas as evid锚ncias, disposto a reconhecer que foi golpe.

A gente nunca mais brigou por futebol

Gregorio Duvivier 

No meu tempo, filho, a gente brigava por futebol. N茫o sei quando foi que aconteceu. Acho que era 2013. Fred caiu na 谩rea. "P锚nalti!", gritei. N茫o tinha sido –mas era tarde demais pra dar o bra莽o a torcer. Continuei: "O juiz sempre rouba pro Flamengo!". E meu amigo flamenguista: "Mas n茫o 茅 a gente que t谩 devendo a s茅rie B!". Da铆 eu falei no gol de barriga, ele falou de novo na s茅rie B, da铆 falei que ele era um imbecil e ele falou de novo da s茅rie B (sim, tive que ouvir muito sobre a s茅rie B). Foi a 煤ltima vez que briguei por isso.

Hoje uma briga por futebol parece t茫o anacr么nica quanto um fax. Filho, fax era um telefone que imprimia. Boa pergunta, filho. N茫o sei por que terminou. Agora que voc锚 falou: saudades do fax.

No tempo do fax, a gente n茫o sabia ao certo quem estava de um lado e quem estava de outro. Seus av贸s, por exemplo, votaram no Lula em 89, FHC em 94, Lula em 98, e n茫o tinham transtorno bipolar. Isso era normal, filho. Mais que isso: era irrelevante. Voc锚 podia saber o signo, o time, o CEP, podia saber a cor dos pentelhos, mas n茫o sabia em quem o sujeito votava. Minha av贸 paterna, por exemplo. Morreu antes do Facebook. Seria coxinha ou petralha? Dif铆cil dizer. N茫o ocorreu a ningu茅m perguntar.

Claro que tinham exce莽玫es. Todo mundo tinha um tio politizado. Mas era um exc锚ntrico, um louco. Tadinho, n茫o tinha nem com quem brigar. Gritava improp茅rios apocal铆pticos na mesa de jantar. Ningu茅m dava ouvidos. At茅 que um dia –n茫o sei dizer qual –todos n贸s viramos esse tio. Talvez tenha sido uma maldi莽茫o lan莽ada por algum tio cansado de n茫o ser ouvido. N茫o h谩 uma mesa de jantar em que n茫o se gritem improp茅rios apocal铆pticos.

H谩 quem tente escapar. Mas n茫o 茅 f谩cil. Chama de impeachment ou golpe? Chama Dilma de ex-presidente ou ex-presidenta? At茅 a l铆ngua te obriga a se posicionar: 茅 imposs铆vel chamar de ex-presidentx.

H谩 quem consiga escapar, 茅 verdade. O famoso "isent茫o". Essa palavra tampouco existia, filho. N茫o existia n茫o porque n茫o existisse o isent茫o, mas porque isent玫es 茅ramos todos n贸s. Bons tempos? Voc锚 acha porque n茫o viveu.

Por um lado, hoje a gente discute sobre coisas que de fato podem mudar nossa vida. Por outro, 茅 verdade, o n铆vel das discuss玫es n茫o melhorou. "Foi p锚nalti." "N茫o foi." "Cala a boca." "Vem calar." Ningu茅m parece, mesmo com todas as evid锚ncias, disposto a reconhecer que foi golpe. Digo, p锚nalti! Droga. J谩 n茫o sei ser isent茫o.